Congresso em Foco – O que o livro “Direito Eleitoral Brasileiro” apresenta de novidade na área?
Márlon Reis – O Direito Eleitoral foi profundamente transformado por duas leis de iniciativa popular. Uma, a lei 9840, de 1999, que tornou possível a cassação por compra de votos e por uso eleitoral da máquina administrativa, e, agora mais recentemente, pela Lei Complementar 135/90, que é a Lei da Ficha Limpa. Essas duas leis alteram profundamente o Direito Eleitoral brasileiro. Então, eu posso afirmar sem nenhum exagero que há um novo Direito Eleitoral, que não é só baseado na lei, mas cuja constitucionalidade já foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal. A intenção do livro é fazer uma análise geral de todo o Direito brasileiro, em todas as suas fases, dentro dessa nova ótica inaugurada pela própria sociedade através de suas iniciativas populares.
Tem um capítulo inteiro que dedico às condições de inelegibilidade. E lá, cada dispositivo da Lei da Ficha Limpa é analisado profundamente, sendo que eu aproveito a oportunidade para revelar todas as concepções que estavam por trás de cada mudança mais essencial da Ficha Limpa. Inclusive, aspectos que não têm sido devidamente lembrados ou mencionados e que são muito importantes. As pessoas costumam ver a ficha limpa apenas por conta da inelegibilidade dos condenados, mas na verdade a Lei da Ficha Limpa muda muito o Direito Eleitoral. Por exemplo, ela faz com que os processos que tratam de corrupção eleitoral, tenham prioridade na justiça eleitoral durante todo o seu período de duração.
Antes, essa prioridade era dada somente durante o período eleitoral, depois eles caíam na vala comum da morosidade processual. Agora não. Eles são prioritários. São processos importantíssimos para a sociedade. Tem que haver uma resposta. Inclusive, o Conselho Nacional de Justiça tem que fiscalizar o rápido andamento desses processos, e exigir que seja dada uma resposta para a população sobre os casos de corrupção em eleições.
Outro aspecto importantíssimo é sobre o reconhecimento de abuso de poder. Não se exige mais para o reconhecimento de abuso de poder político e econômico, que haja um potencial impacto no resultado da eleição. Antigamente, a jurisprudência exigia que a prática do ato abusivo tivesse sido suficiente para alterar o resultado da eleição. Então, isso tornava praticamente impossível a aplicação das medidas porque se houvesse uma diferença muito grande de votos entre o primeiro e o segundo colocado, eles deixavam de aplicar a medida, mesmo reconhecendo que houve o abuso por dizer que não foi aquele abuso que alterou a realidade eleitoral.
Agora, não é mais possível para a Justiça eleitoral considerar o resultado. Ela tem que verificar apenas a ilicitude do ato. Por exemplo, se uma pessoa distribuísse uma cesta básica e tivesse mil votos de diferença em relação ao segundo colocado, no entendimento anterior era de que não houve influência no resultado do pleito porque houve muito mais votos do que aquele ato que foi descoberto. Mas agora não pode mais ser assim. Basta ser visto que ele praticou um ato ilegal e aí já é o suficiente para que haja a punição, incluindo a inelegibilidade decorrente de abuso de poder. Então são muitos aspectos que a lei tem que não foram devidamente abordados no debate público que existe sobre ela.
Então, para todos os interessados, não só os juristas, mas para membros da sociedade, os pesquisadores da ciência política, da sociologia, o conhecimento da Lei da Ficha Limpa está tratado no livro de maneira integral, não só apenas os mais mencionados. Ele relê o Direito Eleitoral sob a ótica das inovações promovidas pela sociedade civil. Então, eu afirmo no livro que nós estamos diante de um novo Direito Eleitoral orientado por uma nova ótica e um novo conjunto de princípios. E sob essa nova ótica do Direito Eleitoral, transformado pela própria sociedade é que todas as instituições eleitorais são relidas, não apenas a essas que dizem respeito à Lei da Ficha Limpa ou a que fala sobre a compra de votos, mas todo o Direito Eleitoral é reanalisado a partir dessa nova perspectiva, que é contemporânea e já referendada pelo STF e pelo Tribunal Superior Eleitoral. Então, a ideia é mostrar como compreender, a luz do que já decidiu o STF e o TSE, quais são as instituições eleitorais que estão em vigor no Brasil.
Quais são os outros principais pontos da Lei da Ficha Limpa e quais são suas principais implicações práticas?
Os fatores que irão ensejar a maior aplicação dessa lei são os relacionados a práticas de crimes contra a administração pública, atos de improbidade administrativa, de renúncias praticadas por mandatários para escapar de punições e, talvez, o fator de maior destaque e que vai gerar o maior número de casos de inelegibilidade é o da rejeição de contas públicas, de gestores que no passado geriram recursos públicos, que tiveram sobre seu controle verbas públicas e que as desviaram em proveito próprio ou de terceiros. Nesses casos detectados pelos tribunais de contas, serão o maior fator de inelegibilidade esse ano.
A justiça eleitoral está preparada para lidar com a demanda de recursos que poderão ser apresentados em razão da rejeição de contas?
Todos os anos, já havia uma grande corrida à Justiça na véspera das eleições buscando alcançar essas medidas liminares. Mas o fato de se pleitear não significa que automaticamente essas liminares serão concedidas. Nos casos em que não haja um sinal muito claro de que possa ter havido uma injustiça na rejeição das contas, a Justiça simplesmente nega essas liminares. Então, os que tiveram as liminares negadas, não serão candidatos. Além disso, a jurisprudência já tem evoluído no sentido de que quando se verifica que o pedido foi feito nas vésperas das eleições exclusivamente para embasar o pedido de candidatura, não se deve considerar afastada essa inelegibilidade.
Com a aplicação da Lei da Ficha Limpa, o número de pessoas inelegíveis deverá aumentar?
O número deve se manter como nos outros anos. O que acontece é que no passado, não bastava estar na lista do tribunal de contas para estar inelegível. Era preciso que a inelegibilidade fosse confirmada pela Câmara de Vereadores. Agora não é mais assim, essas pessoas já estão todas inelegíveis.
A Justiça passa a se preocupar mais com a forma como os votos foram obtidos do que com o resultado de uma eleição? O que essa mudança significa?
Exatamente. Quando a Justiça eleitoral tinha que ficar verificando se houve uma potencialidade de impacto no resultado do pleito, ela se preocupava com o resultado da eleição. Não é papel da Justiça se preocupar com resultado de eleição. Ela tem que se preocupar com a maneira como os votos foram obtidos. O papel da Justiça é fiscalizar o comportamento dos candidatos ao longo do pleito e é indiferente o resultado das eleições. E isso tem um impacto prático muito grande, pelo menos em um aspecto. Agora será possível mover ações inclusive contra candidatos que perderam. Quando se exigia que houvesse um resultado positivo na eleição, alcançado pelo candidato por causa do abuso, então os perdedores não podiam ser processados.
Então, agora mesmo quem perdeu a eleição pode sofrer um processo por abuso de poder econômico ou político, se houver praticado, e ficar inelegível para as próximas eleições. Agora, todos respondem, tanto os que venceram quanto os que perderam. É uma mudança de postura e de ponto de vista e é uma de valores. É uma mudança ética e portanto atinge os próprios valores das instituições eleitorais brasileiras.
Qual será o impacto da Lei da Ficha Limpa nas eleições municipais deste ano e nas próximas?
As principais mudanças serão de médio e longo prazo. Porque agora os políticos vão começar a se preocupar mais com seus atos. Por exemplo, a rejeição de contas vai tirar a pessoa por oito anos da vida pública. Então, vai ser preciso analisar com muito mais cuidado cada ato a ser praticado. Então, há a expectativa de uma redução significativa do volume de recursos desviados nas áreas de políticas de educação, saúde, transporte, meio ambiente, alimentação. A nossa expectativa é de que a lei interfira no comportamento dos mandatários que saberão que seus atos tem consequências, e consequências graves, já que não há nada mais importante para uma pessoa que ocupa o poder, de nele permanecer. E a Lei da Ficha Limpa tem o mérito de atingir o bem mais desejado e mais importante para essas pessoas que é o mandato.
Fora do âmbito jurídico, a lei da Ficha Limpa é um instrumento de conscientização da população? Ainda que a lei não seja aplicada em determinada situação, a simples discussão do tema já ajuda a evitar a eleição de candidatos corruptos?
Com certeza. Agora mesmo em Cuiabá, um grupo de estudantes secundaristas está organizando uma campanha que fará para levantar o passado, não apenas dos que vão ficar inelegíveis, mas de todos os políticos, e eles vão publicar as informações processuais de todos os candidatos. Isso é um exemplo de como as coisas estão mudando. Inclusive, o MCCE vai estimular a replicação dessa experiência. Nós consideramos também que a Lei da Ficha Limpa contém valores que já afetaram significativamente a sociedade brasileira. O tema do passado dos candidatos era considerado secundário ou irrelevante e agora ele compõe o centro dos debates políticos brasileiros. Todos os candidatos tentam se esforçar para demonstrar que não têm problemas criminais ou outros problemas do seu passado. Isso já é um impacto cultural que certamente amplia os efeitos da Lei da Ficha Limpa.
O nível de complexidade do raciocínio da população também está aumentando na hora de definir em quem votar. Utilizar outros elementos, elementos novos que não eram observados e que são fundamentais. Eles são relacionados ao que a comunidade já sabe sobre o passado desses candidatos.
Na avaliação do senhor, o Brasil de hoje é formado por bons políticos ou por maus políticos?
Eu acho que ainda há uma maioria de bons políticos, mas os maus são muito organizados, até mais do que os bons. E isso causa um impacto muito elevado nas nossas instituições políticas. E é justamente, a tarefa da sociedade brasileira agora é diminuir ainda mais o percentual de pessoas desonrrosas que ocupam espaços importantes da nossa institucionalidade.
Quais são os próximos projetos que o MCCE deverá apresentar este ano?
Além de uma campanha educativa que continua sempre, pois é uma das características do movimento, nós vamos encabeçar uma campanha pela reforma política. Percebemos que é preciso ir mais além e transformar o sistema eleitoral brasileiro para diminuir o impacto do dinheiro ilegal que hoje financia as campanhas eleitorais. Faremos isso por meio de um novo projeto de lei de iniciativa popular. Ele será baseado em um projeto de consenso das organizações da sociedade civil sobre o que precisa ser feito para mudar o sistema eleitoral brasileiro. Este projeto proporá mudanças significativas no financiamento das campanhas eleitorais, que hoje é realizado por poucas e grandes empresas interessadas na mobilização dos recursos do orçamento. A ideia é também fortalecer os partidos políticos para que eles sejam mais ideológicos e não cabides de interesses particulares como atualmente. Também é preciso fazer um aumento da inserção da mulher na política já que o Brasil amarga uma vergonhosa posição 146 no mundo em termos de participação feminina no parlamento. Também é preciso aumentar os mecanismos de controle social nas eleições.
Com a experiência que o movimento já teve com a Lei da Ficha Limpa, este deverá ser mais um movimento vitorioso?
Com certeza. Se há uma coisa que ninguém aceita mais, é a manutenção do atual sistema eleitoral. Eu creio que ainda terá apelo social maior que no caso da Ficha Limpa. Está havendo um amadurecimento da sociedade civil organizada. O Brasil está se tornando um país mais democrático. E essa democracia está sendo construída de baixo para cima, como são exemplos essas leis de iniciativa popular. Esse novo perfil de movimentos sociais tem um perfil absolutamente plural e que se estende a diversos âmbitos das ideias e das bandeiras, ele agora se une em amplos movimentos para modificar a democracia brasileira.
As marchas contra a corrupção que aconteceram no ano passado e voltaram a acontecer no final de semana, são exemplos dessa mudança?
Essa é a grande novidade. Os movimentos não estão sendo pautados pelos movimentos políticos. Todas as grandes manifestações que já vimos foram agendadas por partidos, inclusive as Diretas Já, o impeachment do Collor. Agora não. Surge uma sociedade que não é anti-partidária e nem apolítica. Pelo contrário. São movimentos que acontecem fora dos partidos, mas na esperança de que os partidos e as eleições sejam aperfeiçoadas. Não são movimentos anárquicos ou anti-políticos, mas objetivam o aperfeiçoamento da democracia. E eles acontecem sem a liderança dos partidos políticos. Essa é a grande novidade histórica. Acreditamos que a reforma política só acontecerá com pressão popular. Há muito tempo que o debate sobre o assunto se arrasta no parlamento sem sinal concreto de que vá render uma efetiva mudança. Então, acreditamos que só mesmo a mobilização social poderá fazer com que o Congresso aprove tais mudanças.
FONTE: facebook via Sônia Barbosa
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